A Primeira Profecia: O retorno de um filme cult
Hollywood tem relançado obstinadamente antigas sagas de terror há vários anos. Recentemente, houve a trilogia Halloween (2018-2022), que apesar de uma boa primeira obra, revelou-se desigual. Depois disso, David Gordon Green infelizmente continuou com essa perspectiva de relançar filmes de terror cult com O Exorcista: O Devoto (2023). E não esqueçamos do O Massacre da Serra Elétrica: O Retorno de Leatherface (2022), da Netflix, que ainda teve algumas boas ideias. Dessas grandes obras do cinema do gênero da década de 1970, ainda houve A Profecia (1976) de Richard Donner, cuja última versão data de 2006.
A ideia de uma prequela não era necessariamente atraente. Que interesse há em contar as origens de Damien, o filho adotivo que acaba por ser o Anticristo? Até porque neste tipo de produção, denominada não-exploração (em torno da crença religiosa, com tramas eclesiásticas e evocação de demônios), corre-se o risco de cair no ridículo, como evidenciado por O Exorcista do Papa (2023) ou Imaculada (2024). Porém, A Primeira Profecia surpreende agradavelmente.
Claro, o filme não foge do folclore sobrenatural. E encontramos os habituais jumpscares, previsíveis para os fãs do gênero. Uma série de clichês horríveis esperados, mas que se desvanecem em favor de uma verdadeira oferta cinematográfica, aterrorizante e fascinante, capaz de acelerar os batimentos.
Um filme aterrorizante que vai além dos clichês
A boa ideia de A Primeira Profecia é antes de tudo acontecer no início dos anos 1970, em Roma. O filme tem a relevância de usar o tempo e o lugar para trazer uma certa profundidade, e de usar o cinema da época para brincar com determinados elementos. Sem recontar a história da Itália, o longa evoca movimentos sociais e manifestações de uma geração jovem que se afastou da crença religiosa. O que servirá então de justificativa para os atos sórdidos de parte da Igreja, um dos temas principais do filme.
Neste contexto, acompanhamos Margaret, que vem dos Estados Unidos para ingressar num orfanato e servir a Igreja. É impossível não pensar em Imaculada porque as duas histórias são tão parecidas no primeiro ato. Mas a ambição de Arkasha Stevenson, diretora e co-roteirista de A Primeira Profecia, é muito mais acentuada. Nem que seja na escrita da personagem Margaret, mais complexa do que parece. Interpretada de forma magnífica por Nell Tiger Free, cuja cinematografia é inegável, Margaret tem uma suposta loucura que permite justificar certos elementos horríveis. Isso permite que Arkasha Stevenson faça propostas visuais marcantes que mergulham o público em um pesadelo angustiante.
Acima de tudo, a diretora encontra o equilíbrio certo entre passagens aparentemente convencionais e uma forma de modernidade. Ela de fato consegue ir além dos horríveis clichês a partir dos quais constrói seu trabalho. Por exemplo, há um sentimento de novidade diante dessas freiras que fumam, que brincam sobre homens e sexualidade, e chegam a se divertir num bar antes de ingressarem na Ordem. Da mesma forma, esta passagem previsível, onde um homem é atropelado por uma van, desperta interesse alguns momentos depois ao nos surpreender com o terror da conclusão sangrenta.
Uma imersão no terror corporal
A maneira de Arkasha Stevenson subverter o classicismo com toques de modernidade visual também é sentida no discurso do filme. Um discurso profundamente moderno sobre a posse dos corpos das mulheres. Rapidamente descobrimos em A Primeira Profecia que uma sociedade sombria força as mulheres a acasalar com uma criatura para dar à luz o Anticristo. Através de uma insuportável cena de parto, Arkasha Stevenson explicou seu desejo de mostrar que “o corpo feminino é violado de dentro para fora”. A imagem desta mulher amarrada, sedada com gás hilariante para torná-la mais dócil, é um gesto político óbvio. Tal como este desejo de inclinar-se mais, na realidade, para o terror corporal do que para a não exploração.
Dessa sequência, mais tarde, surge uma cena assustadora do rosto de Nell Tiger Free, posicionada como se sua cabeça estivesse separada de seu corpo, com seus fios de cabelo ondulados como cobras e separados como pernas de aranha. Chegamos a pensar na Medusa. Não a de Caravaggio, que fez uma representação aterrorizante disso. Mas uma versão moderna na era #MeToo que o tornou um ícone feminista, reabilitando esta criatura mitológica cuja monstruosidade deriva de um estupro de Poseidon em um templo dedicado a Atena. Isso punirá a vítima, transformando-a em uma Górgona.
Entre mitologia e possessão
Em A Primeira Profecia, Margaret e outros encontram seus corpos afetados, feridos e cortados de diferentes maneiras. Como esta freira que tem que cortar o cabelo antes de uma cerimônia para usar o véu. Essa mesma protagonista que, no início do filme, convence a heroína a dar ao seu corpo os últimos momentos de liberdade antes de ingressar na Igreja. O que, aliás, dá origem a uma cena quase onírica, que lembra Demônio de Neon (2016), até com o traje da personagem Margaret, semelhante ao que Elle Fanning usou na obra de Nicolas Winding Refn.
Assim, Arkasha Stevenson faz com A Primeira Profecia uma proposta mais original e ousada do que se esperava. Porque ao invés de se apegar ao personagem Damien, ela coloca as mulheres despossuídas de seus corpos no centro do filme. A diretora também consegue criar uma tensão permanente e oferece à atriz Nell Tiger Free a oportunidade de deixar uma impressão no público. A atriz se destaca durante uma sequência em que, trancada em um quarto, parece afundar na loucura. E mais ainda quando ela convulsiona bestialmente diante das câmeras, como Isabelle Adjani em Possessão (1981) – outra suposta influência da diretora. Com seu olhar hipnotizante e a energia que demonstra, Nell Tiger Free por si só justifica a descoberta de A Primeira Profecia.
A Primeira Profecia de Arkasha Stevenson estreou nos cinemas em 04 de abril de 2024. Em Portugal o filme ganhou o título de O Génio do Mal: O Início.
Veja o trailer acima.
Conclusão
A Primeira Profecia é uma surpresa muito boa. Para além do seu terrível sucesso, o filme fascina pela sua forma de tender ao terror corporal para oferecer uma reflexão sobre o uso do corpo feminino.
Por Pierre Siclier