Histórias de um amor avassalador, marcadas por tragédias e morte têm o seu apelo natural e remontam a tempos imemoriais, vide Romeu e Julieta na época shakespeariana e os mitológicos Orfeu e Eurídice, separados pela morte irreversível. A trama de O Corvo, uma reimaginação do filme original de 1994, tem a priori a qualidade de beber de uma história forte e envolvente criada pelo cartunista James O’Barr.

Na nova versão, o diretor Rupert Sanders - que encabeçou a reimaginação do conto de fadas dos irmãos Grimm no também sombrio Branca de Neve o Caçador - propõe uma outra abordagem à HQ e decide trilhar o seu próprio caminho com um olhar contemporâneo.

O Corvo é o personagem que surge fatidicamente do assassinato de um casal no auge do seu amor. Bill Skarsgård faz do seu Eric uma criação própria, ainda que homenageando a performance de Brandon Lee. O protagonista, um jovem marcado por traumas e que tem o seu próprio lado obscuro, conhece Shelly, vivida por FKA Twigs, em um centro de reabilitação para infratores.

Dois rejeitados pela sociedade que encontram um no outro o acolhimento nunca antes experimentado, formando uma relação de amor puro que depende fundamentalmente da química entre Skarsgård e Twigs que, felizmente, transpira da tela. Um dos grandes desafios da obra é construir esse ‘amor puro’ em tão pouco tempo, dado que o assassinato de ambos os personagens ocorre no início do filme. Sanders recorre a uma sucessão de cenas românticas de pouca roupa, com diálogos profundos e uma música envolvente para sedimentar essa atração mútua. O resultado peca pelo excesso e acaba por evocar os ares de um videoclipe - mas a sinceridade e vulnerabilidade dos olhares entre Eric e Shelley funciona a ponto da performance dos atores ser o pilar que sustenta o longa-metragem.

O romance de Shelley e Eric é interrompido por figuras do passado da garota que a perseguem e matam o casal. Mas as almas recebem destinos diferentes: Shelley desce em direção ao inferno, enquanto Eric acorda em um limbo, onde é recebido por Kronos. O espírito guia orienta-o a consertar o que está errado - o que, na prática, significa voltar ao mundo dos vivos e matar absolutamente todas as pessoas envolvidas na sua morte e de Shelly, até chegar a Vincent Roeg (um bem escalado Danny Huston), o magnata vilanesco que fez um pacto com o diabo para enviar almas inocentes ao inferno em troca da vida eterna. Para completar sua missão e ter a chance de salvar Shelly, Eric torna-se o Corvo, dotado de um poder divino que o faz imortal.

cineserie.com.br
O Corvo © Lionsgate

Sanders não poupa a inocência dos apaixonados e aposta no escancaramento da violência que acomete os amantes - a cena do assassinato é brutal de se assistir e faz qualquer um segurar a respiração de tensão. Há um exagero visual que perpassa todo o filme e que arrisca ultrapassar o bom gosto - claro, Eric precisa receber dezenas de tiros para mostrar a sua imortalidade, mas reintroduzir suas vísceras ou sua tíbia após uma fratura exposta não parece ter muito propósito narrativo a não ser o choque.

Skarsgård faz um trabalho elogiável ao construir um personagem internamente dilacerado, que se move na linha tênue entre amor e raiva e que tem que encarar as próprias sombras em um jogo constante entre obscuridade e luz. Twigs, em seu primeiro papel de protagonismo, tem sucesso ao trazer encantamento e rebeldia à personagem.

A reimaginação de Sanders tenta criar uma atmosfera gótica que sirva à história de maneira pop atualizada, mas a estética modernizada arrisca uma limpeza visual que não deixa espaço para uma sujeira e rebeldia intrínsecos ao personagem. Uma trilha sonora de Joy Division a TRAITRS faz a ponte entre os ares de punk-rock dos anos 80 aos dias de hoje e as composições de Volker Bertelmann engrandecem o filme.

A narrativa é enfraquecida por repetidas auto-referenciações, uma postura desnecessária de plantar sementes para depois colhê-las no final, de uma forma redonda demais, que acaba caindo em repetições de símbolos vazios (o que vale também para alguns, não todos, os flashbacks). A história já contém significados e simbologias intrínsecos muito mais valiosos do que essas ‘referências inteligentes e poéticas’ forçadas. O Corvo ganha quando se debruça sobre seus aspectos sobrenaturais - com destaque para as imagens potentes das cenas filmadas debaixo d’água - quando confia em seus protagonistas para injetar emoção na trama e durante as cenas de ação bem coreografadas.

O Corvo estreia no dia 22 de agosto de 2024 nos cinemas de Portugal e do Brasil.

★★★
3/5