Com um olhar dolorosamente íntimo demais sobre a vida de um casal em desequilíbrio, Anatomia de uma Queda ganhou a atenção da mídia e do público internacional após vencer a Palma de Ouro no Festival de Cannes em 2023. Justine Triet, responsável por roteirizar o longa ao lado de Arthur Harari, e por dirigir aquele que é o seu sexto longa-metragem, concebeu uma obra que desvia dos clichês convencionais dos filmes de tribunal.

Sandra - personagem escrita especialmente para Sandra Hüller - e Samuel habitam um chalé nos alpes franceses com o filho, Daniel. Ela, uma autora de sucesso e ele, um escritor preso em um auto-julgamento insuportável que torna escrever impossível. A relação do casal carrega as sequelas de um acidente que deixou Daniel com deficiências visuais aos 4 anos, o que gerou mágoas que nunca foram completamente resolvidas pelos adultos.

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Anatomia de Uma Queda © Diamond Films

Todas essas informações são descobertas apenas ao longo do filme, durante o julgamento de Sandra, que é indiciada pela morte de Samuel, encontrado 'em circunstâncias suspeitas' após uma queda da janela do sótão da casa. Terá Samuel pulado em um ato desesperado ou terá Sandra empurrado o marido durante uma discussão?

Influência documental

Com fortes raízes no documentário, lançando-se com A Batalha de Solferino, Triet adentrou o território da ficção com seu curta-metragem Vilaine Fille, Mauvais Garçon. Mas a linguagem e o 'fazer cinema' do ponto de vista do documentário nunca abandonaram o seu processo de filmagem, e essa influência voltou com força em Anatomia de uma Queda.

Em entrevista ao programa francês ARTE Info Plus, Triet comenta sobre a permeabilidade existente entre seus trabalhos que, apesar de seguirem uma lógica de diversificação temática entre si e da diretora buscar não se repetir narrativamente, partilham qualidades em comum.

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Anatomia de Uma Queda © Diamond Films

"Eu acho que existe uma porosidade até hoje, porque eu sempre tive um gosto por documentários e eu adoro a ideia de poder me nutrir tanto do documentário quanto da ficção. Penso que meu último filme se nutre de ambos e, para mim mesma, quando eu olho os atores, quando eu procuro por atores, eu escolho profissionais e também não-profissionais. Eu assisto com frequência suas entrevistas e coisas além dos seus filmes, por exemplo."

Espaço para o acaso

Em Sibyl e Na Cama com Victoria, filmes que antecedem a obra premiada, Triet teve uma abordagem mais controladora e menos suscetível ao acaso, mas volta a se abrir para uma linguagem mais documental com Anatomia de uma Queda. Triet conta que, apesar de ter se debruçado durante mais tempo no roteiro do drama de tribunal (que inclusive concorre ao Oscar de melhor roteiro original), tendo 6 meses a mais do que em seus outros trabalhos, tal fato também gerou alguns desafios.

"O que foi interessante é que, justamente, quando eu cheguei para filmar, eu achei o roteiro muito...não congelado, mas escrito demais, e então eu procurei constantemente quebrar essa parte mais rígida, precisava haver vida, eu não podia apenas filmar o roteiro e pronto, é necessário que algo se produza no momento do set."

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Multiplicidade de narrativas

Um dos muitos elementos que tornam Anatomia de uma Queda tão singular entre os filmes do seu gênero, é esse consciente desvio de um polimento excessivo. Ao incorporar pequenos tropeços da câmera nos movimentos de travelling, ao inserir as imagens de menor qualidade e mais tremidas das gravações da equipe de investigação do caso, ao abrir espaço para o inesperado acontecer no set, Triet evoca o documentário e apresenta um trabalho que ganha em complexidade.

O resultado é uma forma que contribui para reforçar a narrativa múltipla do filme. Anatomia de uma Queda depende da sua multiplicidade de visões sobre a conturbada vida íntima de um casal em disputa: há a história do ponto de vista de Sandra, do filho Daniel, a construída pelo advogado, aquela que o promotor veicula, a das testemunhas, até mesmo de Samuel por meio das gravações secretas que ele fazia, e do espectador (que oscila ao longo da obra).

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Improviso

Há momentos em que o filme brilha e que são absolutamente fruto do acidente, do que não foi programado. A inserção em alto volume da versão instrumental de P.I.M.P., de 50 Cent, foi a solução encontrada para a não-liberação dos direitos do uso de Jolene, de Dolly Parton. Ao ScreenDaily Triet confirmou que não foi a primeira escolha de música para a cena, mas é fato que acrescentou outras camadas ao filme, do desconforto da personagem à letra misógina da canção original.

A mise en scène da primeira vez que Daniel é interrogado no tribunal também é fruto desse espaço para o 'brincar' no set. Na coletiva de imprensa em Cannes, Triet explica: "Nesse filme eu senti um prazer formal muito grande, em relação aos filmes anteriores. Senti muito prazer em filmar, mais do que o habitual (...) Eu me diverti muito, e esse faz parte de um dos momentos que eu me lembro de ter improvisado. Eu não sabia mais como filmar esse desfile de pessoas que vem depor no tribunal e foi improvisado no último momento (...) Foi meio que um acidente."

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Anatomia de Uma Queda © Diamond Films

A Verdade

A Justiça e seus mecanismos são uma pequena obsessão de Triet. Desde jovem ela frequentava o Palácio da Justiça em Paris para ver processos. "O que eu acho apaixonante no universo judiciário é a forma como nossas vidas são recuperadas, analisadas, deformadas, e é algo que eu acho de pesadelo e ao mesmo tempo apaixonante."

A questão da verdade é central em Anatomia de uma Queda, uma obra que não responde - e muito menos se propõe a responder - o que de fato aconteceu. Divergindo de filmes tradicionais de tribunal, a obra não pretende dar ao espectador uma resposta sobre o acidente de Samuel, mas antes olha para a busca falhada pela verdade e para a falência da relação conjugal.

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Anatomia de Uma Queda © Diamond Films

"O que é interessante do tribunal é que é um lugar onde nós tentamos organizar o caos. É um lugar onde tentamos falar 'Bom, o homem é algo complexo de se definir e nós vamos tentar organizar esse caos. Nós vamos tentar definir o que é a verdade. O que, evidentemente, nunca acontece e é precisamente o lugar onde a verdade não existe, porque é o espaço da ficção, onde nós deliramos sobre as nossas histórias. Então é um paradoxo.", disse Justine ao ARTE.

E é em seus paradoxos, incongruências e incertezas que o filme só tem a ganhar.

Em cartaz

Anatomia de uma Queda está em cartaz nos cinemas brasileiros. O longa concorre ao Oscar nas categorias de melhor filme, melhor direção, melhor atriz, melhor roteiro original e melhor montagem.