Com Assassinos da Lua das Flores, Martin Scorsese recebeu sua décima indicação ao Oscar de melhor direção, mas o drama histórico se destaca em sua filmografia pela particular colaboração do diretor com a Nação Osage desde a concepção do roteiro, passando pelas múltiplas consultorias até a presença dos Osage nas equipes e no elenco do longa.

A obra se debruça sobre o genocídio vivido pelo povo indígena em suas terras em Oklahoma, no início do século XX. Após a descoberta de petróleo, os Osage se tornaram o povo mais rico per capita do planeta, mas não tardou a chegada de brancos atrás do dinheiro que jorrava tal qual o ouro-negro naquela região. A população indígena foi alvo de uma série de assassinatos que visavam transferir o domínio das terras para os brancos - tais crimes foram eventualmente investigados pelo FBI, ainda que muitos tenham permanecido sem resolução.

Em 2017, o jornalista David Grann lançou o livro de não-ficção que recuperou tais acontecimentos e levou o público a reconhecê-los. Assassinos da Lua das Flores é a adaptação cinematográfica da história, mas o ponto de vista da trama nem sempre foi tal qual o retratado no longa.

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Assassinos da Lua das Flores © Paramount Pictures

Primeira versão do roteiro

Um agente do FBI, interpretado por Leonardo DiCaprio, chega nas terras Osage em Oklahoma para resolver o mistério que envolve os assassinatos - era esse, inicialmente, o filme que Scorsese e Eric Roth estavam escrevendo. A primeira cena: "Ele desce do trem. Nós vemos as botas dele, a câmera vira para cima, ele está usando um chapéu Stetson, olha em volta. Ele não fala nada.", descreveu o diretor. Mas havia algo de desinteressante nesse formato: "Eu realmente sentia que eu já havia visto esse filme antes."

A dinâmica de um agente do FBI que chega na cidade para descobrir quem é o culpado também era algo que não funcionava. "A pergunta não é quem cometeu os crimes, é quem não cometeu.", explica Scorsese em uma conversa com Steven Spielberg. "A cidade toda, todo mundo, nós todos somos cúmplices. Nós realmente somos cúmplices. Nós estamos aqui, agora, sabe, eu sinto isso, que somos todos cúmplices do que aconteceu. Como esse país foi formado, a cultura, tudo."

Uma narrativa simplista não faria jus à complexidade do tema.

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Assassinos da Lua das Flores © Paramount Pictures

Uma relação de confiança

A rica parceria que alterou os rumos de Assassinos da Lua das Flores teve início com uma visita de Scorsese às terras Osage, quando o diretor encontrou, pela primeira vez, em Pawhuska, com Geoffrey Standing Bear, o Chefe Principal da Nação Osage.

Em uma conversa que durou mais de duas horas, o diretor contou sobre o projeto e ouviu as impressões e preocupações - fruto inclusive de sua filmografia marcada por icônicas cenas de violência. Mas Scorsese conseguiu mostrar que queria trabalhar em um outro registro quando citou Silêncio como exemplo. No final das contas, era sobre confiança: "Eles começaram a aceitar que talvez pudessem confiar em mim."

Durante suas estadias na reserva Osage e uma série de jantares onde as pessoas se levantavam para contar histórias sobre seus antepassados e os acontecimentos retratados no filme, a escuta foi fundamental para o que veio a ser a trama do filme.

No Q&A com Spielberg, Scorsese conta: "Uma que se levantou foi Margie Burkhart, quando ela disse, 'Vocês têm que se lembrar de uma coisa', era um grande jantar, ela disse que o seu avô 'Ernest Burkhart e Mollie estavam apaixonados'. E isso ficou na minha cabeça."

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Assassinos da Lua das Flores © Paramount Pictures

A partir desse ponto, o roteiro previamente escrito já parecia obsoleto e sem vida. "Leo (DiCaprio) olhou para mim e disse, 'Onde está o coração do filme?'", ao que Scorsese percebeu que o coração da história estava na relação de Mollie com Ernest. "Então ele olhou para mim e disse, 'E se eu interpretasse o Ernest?' e eu disse, 'Ok...Ok, se você fizer o Ernest, nós pegamos o roteiro, rasgamos ele, e ao invés de fora para dentro, nós vamos de dentro para fora.'"

Foi o insight que mudou o curso da obra.

A presença Osage no filme

Durante os anos de desenvolvimento de Assassinos da Lua das Flores, centenas de membros da Nação Osage participaram do projeto, o que é um marco sem precedentes na história do cinema americano - que é tão fortemente marcada pelas falsas representações dos filmes western. Desde consultores, embaixadores, atores, profissionais da indústria, tentou-se colocar a perspectiva Osage até nos mínimos detalhes do longa-metragem, como trouxe uma matéria da Entertainment Weekly.

Equipe

Julie O'Keefe, nativa de Pawhuska, trabalhou como consultora de figurino e foi uma das responsáveis pela precisão histórica e comprometimento com a verdade da cultura retratada. Uma expert com profundo conhecimento das vestimentas e tradições Osage, trabalhou em parceria com a figurinista Jacqueline West. Juntas, elas organizaram uma exposição de artefatos originais, alugando um hangar e convidando os membros da comunidade a exibirem suas heranças de família. Os objetos foram fotografados e posteriormente replicados ou usados como inspiração para a arte do filme.

"A comunidade estava tão envolvida em garantir que a história fosse autêntica. Realmente envolveu trazer a comunidade e dar a eles uma voz, e permitir que eles compartilhassem, o que é algo que não é feito normalmente."

Elenco

Assassinos da Lua das Flores tem 63 papéis indígenas creditados, personagens com nome, dos quais 49 são interpretados por atores Osage e 14 por membros de outras comunidades indígenas. O processo de casting foi extenso e demorado. Em 2019, Ellen Lewis (que tinha trabalhado com Scorsese em muitos filmes desde Os Bons Companheiros) e Rene Haynes (diretora de casting com uma carreira focada em atores nativos), lançaram uma chamada por todo o estado de Oklahoma. A dupla estima ter visto mais de 2.500 pessoas entre habitantes de Pawhuska, Oklahoma City e Tulsa.

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Assassinos da Lua das Flores © Paramount Pictures

Na frente das câmeras a colaboração também aconteceu de forma espontânea. A icônica cena do Conselho Tribal Osage, que reúne as 25 famílias originais, tem um monólogo emocionante que foi totalmente improvisado por Everett Waller, que interpreta o líder do Conselho. "Eu preciso captar imagens dos rostos das pessoas ouvindo o Conselho, você faria (um discurso) atrás das câmeras para mim?", pediu Scorsese. De repente, Robert De Niro chama a atenção do diretor para Waller, que faz um discurso para gerar reações nos atores. Afinal, seu monólogo despretencioso e improvisado acaba funcionando melhor do que o previsto no roteiro.

Uma família de mulheres

Além da excepcional Lily Gladstone no papel de Mollie Burkhart também as atrizes que interpretam suas irmãs têm origem indígena. A lendária atriz canadense, Tantoo Cardinal, que interpreta Lizzie Q (a mãe de Mollie), tem ascendência Cree e Métis. Cara Jade Myers, JaNae Collins, e Jillian Dion interpretam as irmãs Anna, Reta e Minnie.

O que é empolgante sobre esse elenco, como nota Haynes, é a presença indígena e feminina em papéis centrais. "Eu sabia que esse projeto e esse elenco seriam muito visados. Também eram primordialmente atrizes indígenas mulheres, e isso é raro. Quero dizer, eu fiz alguns projetos que tinham mulheres protagonistas, mas a maioria dos papéis ainda são masculinos. Aqui nós criamos uma família de mulheres, e isso foi muito especial."

Assassinos da Lua das Flores não teria a vida que tem sem a influência e trabalho de toda a comunidade Osage. Felizmente, dentro das limitações que lhe são intrínsecas, Scorsese conseguiu colocar o máximo de elementos e histórias verdadeiras trazidas pelos membros dessa comunidade.

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Assassinos da Lua das Flores © Paramount Pictures

Recepção do filme

Após o lançamento de Assassinos da Lua das Flores, diversos membros da Nação Osage se pronunciaram sobre a obra. O Chefe Standing Bear foi um dos primeiros a colocar suas impressões, durante a première do filme em Cannes. "Posso falar que, em nome da Nação Osage, Scorsese e sua equipe restauraram a confiança."

Chad Renfro, consultor de produção e embaixador, trouxe a importância do feito cinematográfico, reconhecendo as críticas negativas, mas focando na importância do que foi realizado, mesmo com suas limitações. "Nossa língua foi praticamente extinta e aqui está, sendo falada na tela grande. Estamos sendo levados à sério de uma nova maneira. Há tantas opiniões diferentes sobre como pode ser feito de outra forma, mas eu acho que nós precisamos focar em como foi feito - e como podemos fazê-lo melhor da próxima vez."

Christopher Cote, consultor da língua Osage no longa-metragem, falou sobre suas impressões ao THR após ver o filme. "Eu acho que, no final, a pergunta que fica é: Até quando você será complacente com o racismo? Até quando você vai estar de acordo com algo e não falar nada, não se manifestar, até quando você será cúmplice? Eu acho que é porque este filme não foi feito para uma audiência Osage, foi feito para todo mundo, não os Osage. Para aqueles que foram privados de direitos, eles podem se identificar, mas para outros países que têm os seus atos e seu histórico de opressão, essa é uma oportunidade para eles se fazerem essa pergunta moral, e é assim que eu me sinto em relação a esse filme."