Vidas Passadas, primeira obra da diretora Celine Song, foi nomeado para concorrer a melhor filme do Oscar 2024. Com o feito, a artista coreana entrou para uma lista mais do que seleta, de diretores estreantes indicados a melhor filme. Para se ter uma noção, tal fato aconteceu apenas 37 vezes ao longo da história do cinema.

Celine se juntou a nomes como os de Orson Welles (Cidadão Kane), Sam Mendes (Beleza Americana), Sidney Lumet (12 Homens e uma Sentença), e para citar um nome mais recente, Jordan Peele (Corra!). Todos diretores que estrearam com uma obra de grande impacto, pavimentando o caminho para uma carreira notável. Assim, Vidas Passadas também tem tudo para servir à Celine, como uma porta de entrada à primeira prateleira do cinema.

Deste modo, tentaremos desvendar aqui, todo o trajeto de Vidas Passadas, desde a sua criação até a nomeação ao Oscar de melhor filme.

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Vidas Passadas © A24

O circuito, a recepção da crítica e do público

Entre os dez filmes indicados na categoria principal do Oscar, Vidas Passadas foi o primeiro a entrar no circuito de festivais e também comercial. O filme teve a sua première no festival de Sundance no dia 21 de janeiro de 2023, e estreou comercialmente nos Estados Unidos no dia 2 de junho do mesmo ano. Vale pontuar que no Brasil, o filme foi lançado somente no dia 25 de janeiro de 2024.

Um dos grandes méritos de Vidas Passadas, foi o de conseguir passar por vários festivais ao redor do mundo, conquistando um grande apreço do público, e também da crítica especializada. Além de Sundance, o filme foi exibido também em Berlim, San Sebastían, e outros tantos festivais prestigiados.

O longa de Celine alcançou a incrível marca de 96% de aprovação da crítica no Rotten Tomattoes e 94% no Metacritic. Além também de ter uma excelente classificação do público nos respectivos sites, o que mostra que Vidas Passadas é um daqueles poucos filmes, que conseguem arrebatar os dois polos, de forma massiva. Mas para entendermos o por quê deste encanto todo com este filme independente, precisamos recuar alguns passos.

Uma história universal e a sua concepção

O enredo de Vidas Passadas acompanha a história de uma dramaturga chamada Nora (Greta Lee) ao longo do tempo. Uma mulher coreana, que emigra jovem para o Canadá com a sua família, e vê se romper um laço com um amigo de infância chamado Hae Sung (Teo Yoo). Muitos anos depois, já casada com Arthur (John Magaro), Nora reencontra, em Nova York, o velho amigo com quem tinha uma forte ligação, e embarca em uma viagem através do passado, das memórias e dos possíveis destinos da vida.

Celine Song se inspirou na sua própria trajetória para escrever a história. Segundo ela, o início do filme, onde Nora está em um bar com o marido e o amigo coreano, e não se pode distinguir o tipo de relação que existe entre eles, realmente aconteceu na sua vida. Ao El País, a diretora contou que o germe da história surgiu particularmente deste momento, quando ela imaginou o que os outros clientes do bar estariam pensando sobre eles. Foi aí que ela sentiu que responder a estas supostas perguntas seria "uma saída fácil, e não mostraria todas as complexidades da verdade por trás daqueles três".

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Celine passou então a narrar esta anedota para os amigos, e a história do filme, aos poucos, ia ganhando forma. Interessava a ela imaginar como seria se ela tivesse tido outra vida, onde optasse por outras escolhas, quem sabe voltar à Coreia, ter se reaproximado do amigo de infância... No fundo, uma questão de identidade. A diretora contou que, mesmo que a personagem de Nora seja muito parecida com ela própria, há algo dela nos três personagens principais. Já que todos eles estão questionando quem são, qual é a identidade de cada um. Celine disse ao mesmo jornal: "Para mim, a identidade não é um monolito, mas uma característica fluida que está em constante mudança. Não sou Nora, sou Vidas Passadas".

Mas, pelo que vimos até aqui, não só Celine é Vidas Passadas, como também parte do público que se identificou com o filme também é Vidas Passadas. E é neste lugar que mora a grande força do longa, de conseguir transformar algo particular em universal, e conversar com as pessoas utilizando uma história autobiográfica.

“O que foi emocionante foi a jornada para transformar um momento pessoal, que só poderia ter interessado a mim, em uma história com apelo universal. E o fato de que essa obra de arte que brinca com a ficção e a biografia atrai tanta gente, me faz sentir menos sozinha”.

Celine Song ao El País.

Como narrar esta história através do cinema?

Formada em dramaturgia na universidade de Columbia, Celine já tinha dirigido algumas peças de teatro, mas nunca antes tinha realizado um filme. Filha de um cineasta sul-coreano que revelou grandes atores como Song Kang-ho (Parasita), Celine precisava agora entender como seria o processo de transpor a sua história para o cinema. Rapidamente, ela percebeu que utilizar o meio cinematográfico para contar a sua história seria muito diferente do que ela estava acostumada. E esta percepção fez com que ela, aos poucos, desenvolvesse alguns métodos para conseguir passar para a tela as sensações que ela queria comunicar ao público.

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Vidas Passadas © A24

Celine Song consta que, para ela, a grande diferença das duas artes é que, no teatro, não se de trata fazer a obra uma vez com maestria, mas sim ser consistente sempre. Já o cinema, tenta-se captar o momento, o "efêmero", como ela mesmo diz. Uma das estratégias usadas pela diretora, já relatada em algumas entrevistas, foi um método para conseguir captar 'este momento único' na cena em que os dois personagens homens (marido e amigo) se encontram. Celine não deixou os dois atores (John Magaro e Teo Yoo) se encontrarem no set de filmagem antes deles filmarem a cena em que os dois personagens aparecem juntos. Assim, o público conseguiria ter acesso realmente ao momento em que os atores se conheceram - na vida real e na história.

Esses cruzamentos entre o ator e o personagem, a ficção e a autobiografia, a vida atual e as vidas passadas, os desejos momentâneos e as longas aspirações, entre outros tantos paradoxos que a vida e a arte nos apresenta, foi o que estruturou o filme e causou tanta identificação com o público e a crítica. A indicação ao Oscar de Melhor Filme é apenas um detalhe no bonito percurso de Vidas Passadas. Um filme que nos faz olhar de forma mais humana para nós mesmos. Um filme que não tenta trazer respostas. Afinal, a vida é uma contradição.

"Sou quem poderia ter sido e não fui, e também quem sou agora. Não me conheço melhor do que quando tinha 16 anos e ao mesmo tempo estou longe dessa idade. Eu sou uma contradição.”

Celine Song